Natal?
Por Alexandre Honrado
Gosto daquela face do Natal que se impõe serena e na qual deposito beijos de significado antigo. É uma face delicada, com música muito calma ou talvez percorrida por esse silêncio que por vezes tanto desejamos – o mundo em que vivemos reclama silêncios saudáveis, desses em que podemos recolher as mãos alheias nas nossas mãos e contemplar sem débitos a face serena do Natal.
Gosto do Natal de certas memórias. Eu, a tentar entrar no grande armário – a que o meu avô chamava o Armário das Orelhas (e que eu deixei noutro registo num dos poucos livros em que falo realmente de mim e dos meus segredos de infância) – e a procurar adivinhar que prenda me caberia dos poucos embrulhos que, lá dentro, nas sombras, me pareciam reluzentes (mesmo na penumbra onde só os adivinhava e tocava receosamente).
Gosto do Natal em que me retiro para dentro de mim, ali recordo risos de infância, audácias ingénuas de adolescente e pequenos, quase nenhuns, triunfos de jovem adulto e adulto.
Não gosto do Natal das memórias negras, também foram e são várias, e sobretudo não gosto dos Natais do medo – aliás este de 2020 não será o único, acreditem.
Não gosto muito de doces de Natal, perdoem-me, nem das lojas aos empurrões de prendas inúteis, nem das luzes que começam a acender-se nas ruas em novembro, ou da miséria dourada dos apelos ao consumo, que são afinal e apenas, os gritos de desespero de quem precisa do pão de cada dia.
Não gosto dos natais com carimbo de proprietário, esses das grandes marcas, sejam elas igrejas ou armazéns de grande comércio, natais de mercearia amplificada, não os sei distinguir com aprumo nem apuro. Tal como não gosto do Natal com música de elevador em todas as rádios, tevês e redes mais ou menos sociais, nem do Natal das mãos armadas e dos políticos insensíveis. E desse insuportável Natal da caridadezinha, que expulsa os pobres da porta dos templos e estende a mão às esmolas dos mais crédulos.
Não gosto e tenho esse direito, como têm direito os milhões de crianças do mundo a ter Natal durante toda a sua infância, dia após dia. Como têm direito os povos à magra nesga da terra que pisam. Como têm direito à paz que é a proximidade e não a rivalidade entre semelhanças.
Acredito em coisas que muitos não acreditam. É muito doloroso, digo e repito. Porque essa crença é da face serena e livre onde, perdido como um menino fascinado pelas luzes coloridas, festejo a utopia, esta espécie de Natal alternativo, esta voz interior que me acompanha desde sempre.
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